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sábado, 2 de maio de 2015

A televisão e a volta às cavernas


Roberto Pompeu de Toledo
Tende-se a esquecer, nestes tempos, que o melhor meio de comunicação
já inventado é a palavra. Qual é a minha porta? Está o leitor, ou a leitora, diante
dos toaletes de um restaurante, um teatro ou hotel, e com frequência
experimentará um momento de vacilação. Não que tenha dúvida quanto ao próprio
sexo. A dúvida é com relação àqueles sinais inscritos sobre cada uma das portas –
que querem dizer? Olha-se bem. Procura-se decifrar seu significado profundo.
Enfim, vem a iluminação: ah, sim, este é um boneco de calças. Sim, parece ser
isso. E aquela silhueta, ali ao lado, parece ser uma boneca de saia. Então, esta é a
minha porta, concluirá o leitor. E aquela é a minha, concluirá a leitora.
A humanidade demorou milhões de anos para inventar a linguagem escrita
e vêm agora as portas dos toaletes e a desinventam. Por que não escrever
“homens” e “mulheres”, reunião de letras que proporciona a segurança da clareza
e do entendimento imediato? Não. Algumas portas exibem silhuetas de calças e
saias. Outras, desenhos de cartolas, luvas, bolsas, gravatas, cachimbos e outros
adereços de uso supostamente exclusivo de um sexo ou outro. Milhões de anos de
progresso da humanidade, até a invenção da comunicação escrita, são jogados
fora, à porta dos toaletes.
E, no entanto a palavra, a palavra escrita especialmente, continua sendo
estupendo meio de comunicação. Deixa-se um bilhete para um colega de trabalho
dizendo “ Fui para casa”, e vazado nesses termos, com o uso dessas três singelas
palavrinhas, será sem dúvida de entendimento mais fácil e unívoco do que se
desenhar uma casinha de um lado, um hominho de outro, e uma flecha indicando
o movimento de um para a outra. Vivemos um tempo de culto da imagem.
Esquece-se o valor inestimável da palavra.
A comunicação escrita é muito eficiente, inclusive porque tem o dom de
atravessar os séculos. Tomemos Camões. Claro que se algum cinegrafista
amador tivesse registrado o naufrágio do poeta, perto da foz do rio Mekong, nos
confins da Ásia, e as cenas em que ele, como diz a lenda, procurava a salvação
simultânea da própria vida e da obra, nadando com um braço e com o outro
segurando os originais dos Lusíadas, acima da linha d’água para mantê-los secos,
seria um documento de grande valor. Teríamos uma edição de gala do Jornal
Nacional. Mas o filme só despertaria esse interesse porque Camões é Camões.
Ou seja, porque é autor de uma obra escrita que atravessou os séculos. Camões
comunica-se conosco, quatro séculos depois de sua morte, porque se utilizou
dessa ferramenta insubstituível que é a palavra gravada num papel, ou num
papiro, ou numa prensa.
O pensador italiano Norberto Bobbio, em seu último livro publicado no
Brasil (O tempo da memória), afirma que se irrita em falar ao telefone. Bobbio cita
outro italiano, Guido Ceronetti, que escreveu: “Sempre que posso (...) faço apaixonada apologia de escrever cartas entre seres pensantes, ainda não embrutecidos, que se comunicam apenas pelo telefone, ou então por fax ou telefone celular. (...) O homem que pensa de verdade escreve cartas aos amigos”.
O homem do século XX acostumou-se a pensar que o século XX é
maravilhoso. Em matéria de ciência e tecnologia, suas conquistas seriam
inigualáveis. Vá lá, o telefone representou um avanço. Mas consideremos, por um
momento, o que ele pôs a perder. O hábito de escrever cartas, como diz Ceronetti,
e o exercício de inteligência que isso representa. A conversa direta, olho no olho.
O hábito de fazer visitas, de procurar diretamente as pessoas. Com telefone, não
teria havido este ponto alto da criação humana que é o romance do século XIX. Os
enredos tem base em visitas, encontros inesperados, notícias que chegam tarde.
Com telefone, não há história de Dostoievski, Balzac, Dickens ou Eça de Queirós
que resista.
A desvalorização da comunicação escrita, em nosso tempo, começa numa
banalidade como as portas dos toaletes e culmina neste símbolo do século que é o
culto da conquistas tecnológicas – do rádio ao telefone celular, no caso das
comunicações. Ora, conquista por conquista, continua insuperável, no mesmo
ramo das comunicações, em primeiro lugar a invenção de uma língua comum, em
cada determinada comunidade, e em segundo a reprodução dessa língua em
signos escritos.
Lorde Thomson of Monifieth, um inglês que já presidiu a Independent
Broadcasting Authority, órgão de supervisão do sistema de rádio e televisão na
Grã-Bretanha, disse certa vez numa conferência que lamenta não ter surgido na
história da humanidade primeiro a televisão, e depois os tipos móveis de
Gutenberg. “Penso que imprimir e ler representam formas mais avançadas de
comunicação civilizada do que a transmissão de TV”, afirmou. Esse lúcido inglês
confessou que, em seus momentos sombrios, se sente incomodado com o
pensamento de que a humanidade caminhou milhões de anos para voltar ao ponto
de partida. Começou magnetizada pelos desenhos nas paredes das cavernas e
terminou magnetizada diante das figuras de alta definição nas paredes onde se
embutem os aparelhos de televisão.

TOLEDO, Roberto Pompeu de. Ensaio. Revista Veja, 25 jun. 1997. Abril S.A.

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